Roderick continuava confuso, ele ainda não havia entendido o porquê de ter sido atacado, muito menos o daquele homem ter se matado. Valentim estava ocupado demais, perdido em seus próprios pensamentos para ajudar, ele aparentava preocupação e balbuciava baboseiras para si. O cavaleiro, vendo que seu aliado não seria de grande ajuda, foi ele mesmo verificar se ainda havia algum assassino vivo, em vão, o único que ainda poderia estar vivo era o que foi arremessado de cabeça no assoalho, mas ele havia quebrado o pescoço com a queda. Constatando que estava tudo seguro, Roderick tratou de libertar o monge, desatou os nós que prendiam seus braços e pernas, mas logo depois de tirar a mordaça de sua boca, preferiu não ter feito isso.
— Deus do céu! Minha nossa! Cruz credo! Meu Deus! Que incrível! Eu não acredito! — começou a exclamar sem parar o monge. Ele falava muito e rapidamente, o cavaleiro nem tinha tempo de perguntar nada, pois logo era cortado. Quase dois minutos depois ele ainda continuava levantando exclamações de surpresa e teria continuado por períodos indeterminados, não fosse por Roderick perder a paciência e interpelá-lo aos gritos.
— Silêncio! Do que você está falando? — indagou o cavaleiro furiosamente. Valentim, notando que Roderick estava se exaltando, finalmente acordou de seus devaneios e receios sobre a ameaça de morte e interveio para evitar uma desgraça.
— Calma, Augusto. Ele está só brincando — tentou apaziguar, atenuando o “Augusto” para que o cavaleiro lembrasse de não dizer seu nome completo e evitasse possíveis confusões que apenas o nome Roderick poderia trazer.
— Eu não estou brincando, estou falando de você, valoroso guerreiro — falou Paulo apontando para Roderick. — Que exemplar do espécime masculino você é. As mulheres devem fazer fila para que você as deflore, seus maridos devem virar o rosto fingindo não ver, ou quem sabe assistam com orgulho.
— Que tipo de brincadeira é essa? — disse o cavaleiro corando.
— Não é brincadeira. Tirando a história de tripas e sangue no chão, uma mulher teria ficado encharcada com essa demonstração tão grandiosa de virilidade.
— Pare com isso Paulo — interveio Valentim, temendo o pior. — Ele não é o tipo de homem que ouve esse tipo de troça.
— Como não, ele é o tipo de homem para qualquer coisa, ele é o tipo de homem até para mim, ou para você, ou para qualquer um. Ouça bem meu amigo, ninguém teria coragem de reclamar desse homem, nem mesmo se fosse violentado por ele. Valentim, você não viu o que ele fez aqui? Eu juro que me caguei pensando que ele ia me matar também, mas depois que vi que ele estava acompanhado do meu bom amigo Valentim, entendi que, na verdade, ele é seu guarda-costas.
— Eu não sou o guarda-costas de Valentim — corrigiu o cavaleiro ofendido. — Respeite-me, jovem monge.
— Então vocês são o quê? Amantes? — disse o monge fazendo uma voz sugestiva. — Acaso vieram me chamar para o relacionamento? Se for, digo logo que sim. Mesmo tendo o desprazer de ficar com Valentim, tudo valerá a pena se eu puder estar com você, oh, poderoso guerreiro.
— Eu não sou pederasta — protestou o cavaleiro.
— Eu também não era, mas depois que vi você agir, estou pensando seriamente na ideia. Não fosse esse seu cavanhaque ridículo, você seria o homem mais bonito que já vi no mundo.
— Seu desgraçado — disse Roderick puxando sua espada, mas Valentim se interpôs no meio de ambos. — Você fala demais, monge. Acaso quer morrer?
— Não! Deuses, não! — falou o monge afetando temor — Mas se eu quisesse, estaria muito chateado com você, pois me tiraste uma oportunidade de ouro de ir para o reino dos mortos ao matar aqueles homens.
— Calma, Augusto — implorou Valentim. — Esse desgraçado é assim mesmo, não adianta se irritar. Embora ele seja esse excremento imundo, que dá nojo até de olhar, no fundo, em um canto quase recôndito, ele é uma boa pessoa.
— Foi a coisa mais carinhosa que já disseram de mim — disse Paulo fingindo chorar.
— Estamos perdendo tempo aqui, Valentim. Esse homem é louco, vamos direto para o mosteiro.
— Augusto, você me deu a sua palavra que me deixaria cuidar disso — falou Valentim tentando convencer o cavaleiro, apelando para código de honra dele, o que pareceu ter dado certo, já que Roderick guardou a espada na bainha. — Eu te avisei que ele era uma pessoa insuportável, mas que era importante.
— Tudo bem, eu não me pronunciarei — resignou-se o cavaleiro.
— Ótimo. Agora, Paulo, por favor, deixe de se fazer de louco por apenas alguns segundos e me explique que merda esses homens estavam fazendo aqui.
— Você está falando desses adubos decorando a minha casa? — disse o monge apontando para os cadáveres.
— É evidente que estou falando deles. Por que esses homens estavam aqui e por que eles tentavam te enforcar?
— Sinceramente? Não faço ideia — disse o monge enquanto abria uma garrafa velha de bebida que estava em um pequeno armário.
— Como não sabe? Que espécie de brincadeira é essa?
— Dessa vez não é brincadeira, juro. Não faço ideia do que esses loucos queriam, mas acho... — disse baixando o tom de voz, como se estivesse contando um segredo — Que eles queriam me matar.
— Sim, senhor mestre do óbvio, isso eu sei, quero saber os motivos.
— Sei lá, vai ver alguém estava com raiva de mim e mandou esses cretinos me matarem. Não sei o porquê, mas muitas pessoas têm raiva de mim.
— Eu sei muito bem o porquê — falou o bandoleiro com propriedade. — Porque você é detestável, mas nem por isso alguém pagaria uma fortuna para te ver morto. Aqueles eram os assassinos mais caros que o dinheiro pode pagar, apenas uma pessoa de extrema riqueza poderia pagar por seus serviços, e nenhuma pessoa com essas características sequer perderia tempo pensando em um lixo como você.
— Assim você me magoa, vou até beber para esconder minhas lágrimas — disse Paulo e deu uma generosa tragada em uma bebida.
— Paulo, não tem graça. Esses assassinos são perigosos e agora, por sua causa, eles também estão atrás de mim e de meu amigo Augusto. Diga-me tudo o que você sabe sobre eles.
— Tudo que eu sei é que eles estão tentando me matar há alguns dias.
— Essa não foi a primeira vez que eles te atacaram? — indagou Valentim, surpreso.
— Eu disse que eles estão tentando me matar há alguns dias e não que eles já me atacaram. Eles têm sido discretos, primeiro alguém colocou veneno na minha sopa, mas meu finado rato de estimação tomou e agora ele está roendo queijos no paraíso, quando eu vi o rato morto desisti de tomar a sopa em sua homenagem; depois meu barco de pesca estava furado e afundou comigo no rio, por sorte eu sou um excelente pedaço de bosta e boio muito bem. Veja bem, Valentim, foram vários atentados. Tem umas duas semanas que eles tentam me matar de algum jeito, venenos, acidentes de estrada, animais selvagens me atacando, mas alguma coisa sempre acontece e me salva. Agora acho que eles perderam a paciência e vieram fazer de forma mais descarada.
— Sim, mas por algum motivo eles queriam enforcar você de um jeito que parecesse que foi suicídio. Você não entendeu, Paulo? A pessoa que te quer morto, quer fazer com que pareça um acidente, ou uma morte que não envolva diretamente um assassinato. No entanto, você é o desgraçado mais sortudo do mundo, por isso sobreviveu.
— Acho que eu realmente seria sortudo se não houvesse ninguém querendo me matar; se minha morada não estivesse cheia de sangue e corpos, ou mesmo que eu tivesse meu pinto maior que meu braço esquerdo, mas você é quem sabe das coisas, eu realmente devo ser muito sortudo.
— Você entendeu o que eu quis dizer.
— Entendi, agora eu só preciso entender o que você faz aqui com esse semideus da morte. Trouxe bebida? — perguntou esperançoso e querendo trocar de assunto.
— Não, são outros negócios que me trazem aqui.
— Se você não fosse tão legal, eu o mandaria embora agora. Valentim, gosto de você porque sempre que te vejo está trazendo bebida para mim, por favor, não faça com que eu perca esse sentimento por você.
— Na verdade eu sempre trouxe bebida para o mosteiro, você deveria apenas transportar para lá, mas sei muito bem que você extravia a maior parte.
— Por favor, não nos prendamos à detalhes, espero inclusive que não repita esse tipo de história aos meus superiores, pois eles podem acreditar nessa besteira. Diga, bom amigo, além de salvar a pele desse monge gracioso que vos fala, qual é o motivo que o traz ao meu casebre junto do magnum opus de Deus?
— Espere, Valentim — pediu Roderick, ao que o bandoleiro consentiu assustado, mas o cavaleiro fez um sinal com a mão dizendo ao outro que não se preocupasse —, eu contarei o porquê de estarmos aqui. Jovem monge, não há dúvidas de que o que eu vou contar é inverossímil, no entanto, peço que acredite em mim…
O cavaleiro contou toda a história do rapto das mulheres pela criatura que ele dava a alcunha de Sombra Negra, mas omitiu seu sobrenome e que estava a serviço do rei Diógenes. O monge ouviu tudo, ora atentamente, ora vasculhando os cadáveres em busca de pertences, em alguns momentos Roderick pensou em parar de contar a história, crendo que o outro não ouvia, mas Paulo sempre pedia para ele continuar quando isso acontecia.
— ...Agora só voltarei para meu reino quando eu conseguir recuperar estas mulheres e destruir aquela criatura. O que me diz, jovem monge? Você, ou alguém de seu mosteiro pode me dar informações sobre esta criatura.
— Eu posso dar-te apenas uma informação: desista! — disse Paulo assumindo uma postura séria pela primeira vez.
— Como assim? Você sabe onde encontrar essa criatura? — perguntou o cavaleiro efusivamente.
— Sei muito bem do que você está falando, por isso eu vou te dizer que é impossível. O melhor é voltar para sua casa e desistir.
— Explique isso melhor — pediu Valentim.
— Essas coisas com que vocês estão mexendo são perigosas demais até para se comentar. Não é como o perigo que esses assassinos trouxeram, o máximo que eles podiam fazer é matar-nos. O controlador dessas sombras pode trazer perigo à nossa alma imortal.
— E quem é este? — implorou o cavaleiro.
— Não posso dizer — disse Paulo mostrando-se ofendido —, eu fiz um juramento.
— Você deve isso a ele, Paulo — falou Valentim. — Ele salvou sua vida.
— Minha vida não vale nada comparada aos segredos do mosteiro.
— Tem razão, sua vida não vale nada comparada nem mesmo a um pedaço de estrume. Dou-te dez moedas de ouro — ofereceu o bandoleiro.
— Vinte — deu a contraproposta o monge.
— Posso pagar quinze e um litro de bebida do antigo rei Dioniso.
— Me dê o litro e pode ficar com as moedas, eu ia dar para você de qualquer jeito para que me trouxesse um mesmo — disse Paulo apertando a mão de Valentim e fechando o negócio. O bandoleiro deu um odre para o monge que sorveu avidamente. A bebida não era do antigo rei Dioniso, pois essa era muito rara, mas Valentim sabia que o monge ia beber tudo de uma vez e desmaiar, como ele sempre costumava fazer. Roderick protestou que precisava do monge acordado, mas Valentim o convenceu de que agora ele contaria tudo quando acordasse.
O bandoleiro pediu ao cavaleiro que seguissem viagem, pois o monge provavelmente só acordaria à noite e não seria bom ficar naquele casebre cheio de cadáveres. Roderick concordou e eles voltaram à estrada que levava até o topo da montanha. Por vezes o cavaleiro parava para atirar tiros de flecha à esmo, Valentim não entendia o porquê. Ao anoitecer acamparam em uma clareira ao lado da estrada, o monge acordou e, curiosamente, não estava de ressaca. Ele ainda irritou muito os dois antes de começar a contar tudo o que sabia, mas depois de muita insistência, e algumas ameaças, ele começou a falar.
— Vejam bem, o que eu vou contar para vocês é um segredo e vocês têm que me prometer que não contarão para outras pessoas — ambos concordaram. — Para falar a verdade, o motivo de eu estar aqui é porque contei o segredo algumas vezes quando estava sob o efeito de álcool. Eu quase fui expulso do mosteiro por causa disso, mas eles notaram que seria muito pior se eu fosse expulso e saísse pelo mundo contando o segredo do mosteiro. Os grandes monges superiores resolveram me aplicar uma punição pior que a expulsão, que é ficar aqui no casebre comprando as coisas necessárias para a sobrevivência dos monges. Meu cargo é o mais ordinário do mosteiro, apenas os monges mais medíocres o assumem, para vocês terem ideia, meu predecessor era leproso e sofria de uma grande demência. Hoje ele voltou para o mosteiro e eu fiquei no lugar dele como punição por minha boca grande.
— E por que você está fazendo isso de novo? — indagou Roderick, ao que Valentim respondeu com um cutucão.
— Não se preocupe, Valentim — disse Paulo. — Eu vou contar tudo, e sabe por quê? Porque eu não me importo com a porcaria do segredo do mosteiro. Esses monges na verdade são uns desgraçados pedantes. Eles se acham superiores à humanidade, por isso acham que ficar aqui servindo de intermediário é uma função ínfera, mas eu lhes digo que adorei ter sido rebaixado, isso aqui é pura sinecura. Eu odiava viver lá, tendo que estudar todos os dias até a exaustão mental e viver sempre no celibato, era terrível. Há anos eu planejava fugir do mosteiro. Eu até consegui ir a algumas festas em Viseu, foi lá que eu acabei contando os segredos do mosteiro, mas muita gente já tinha ouvido falar pelos antigos monges desertores, por isso pouca gente acreditou e minhas confissões viraram apenas mais uma parte da lenda do mosteiro maldito. Quando eu fui rebaixado para intermediador do mosteiro com a humanidade, minha vida melhorou absurdamente. Recebo a comida e a bebida para o mosteiro, mas só passo a quantidade que quero e eles nunca saberão, pois eu sou o único que tem contato com os vendedores. Do ouro do mosteiro eu sempre pego a minha parte e gasto com mulheres e bebidas. Nunca mais passou pela minha cabeça fugir. Hoje eu vivo a vida mais hedonista que um homem poderia pedir aos céus.
— Muito bom para você, Paulo — disse Valentim —, mas eu não quero saber da merda da sua vida, nós queremos saber sobre o Sombra Negra. Ele existe?
— Eu estava chegando lá, mas você fica me interrompendo, tudo tem um contexto e é bom eu contar um pouco sobre minha história e sobre a história do mosteiro.
— Ele tem razão, Valentim, deixe o homem falar — ralhou Roderick.
— Está vendo, o ceifador de vidas concorda comigo, você está atrapalhando.
— Pois diga logo de uma vez, estafermo, eu não interromperei mais! — exclamou o bandoleiro se irritando.
— Você precisa se divertir mais, meu amigo, uma boa mulher deve ajudar, ou quem sabe uma boa cabrita — brincou Paulo, ao que Valentim respondeu com um gesto obsceno feito com o dedo médio. — Voltando ao assunto, o mosteiro foi construído há centenas de anos por um monge chamado Ifnir, conhecido como: o possesso. Ele era um monge itinerante, um nômade que ninguém sabia ao certo de onde veio. Ele dizia possuir um grande segredo e todos que o seguissem poderiam ter poderes inimagináveis para os homens. Ele logo conseguiu inúmeros seguidores que ajudaram-no a construir um mosteiro no alto da montanha. Logo o mosteiro se consolidou e inúmeros homens iam atrás da dádiva de Ifnir.
— Diga logo de uma vez — implorou Valentim.
— Céus, homem! — exclamou Paulo. — Você é muito apressado, tenho certeza que as mulheres devem odiar sua precocidade. Você tinha prometido que não me interromperia mais. Será possível que não se pode mais nem confiar na palavra de um criminoso.
— Silêncio, Valentim — pediu Roderick e o bandoleiro obedeceu, mas não sem se irritar mais ainda.
— Continuando o que eu estava dizendo antes de ser interrompido covardemente. Ifnir ensinou aos homens segredos profanos, perdidos há muitos anos pelas antigas civilizações. Ele ensinou homens a fazerem pactos com demônios. Você pode até me olhar com essa cara de incredulidade, Valentim, mas é verdade, eu mesmo já consegui falar com um demônio e fiz um pacto com um deles. Nós estudamos dia e noite a respeito dos demônios, conhecemos a história de todos eles, quanto mais estudioso é um monge, mais poderoso é o demônio que ele pode visitar.
— Visitar? Como assim? — indagou Roderick.
— Nós conseguimos criar um método de ir ao plano astral, é para isso que usamos as bebidas, primeiro como oferenda, segundo como instrumento para irmos ao nosso corpo espiritual. Esse corpo espiritual pode visitar a morada dos demônios, quanto mais dedicado é o monge, mais poderoso é o demônio que ele pode visitar. Os demônios estão presos por barreiras místicas, mas eles ainda podem oferecer poderes aos que os visitam. A sombra negra que você viu, não é uma criatura, na verdade ela é um poder concedido por um desses demônios.
— E tem como descobrir quem usou esse poder? — perguntou o cavaleiro esperançosamente.
— Até que tem, mas vou logo avisando, esse é um poder do mais alto escalão. Controlar sombras que ferem almas e podem carregar pessoas é um poder que só os mais poderosos demônios podem dar, consequentemente, a pessoa que fez um pacto com essa criatura também é muito poderosa, por isso eu pedi para que desistisse.
— Eu não posso desistir, não me importa se for um demônio ou um homem endemoninhado, eu o farei pagar. Por favor, Paulo, me diga como encontrar esse maldito que levou as mulheres que estavam sob minha proteção.
— Tudo bem — disse Paulo —, eu não sei exatamente qual demônio é porque eu nunca estudei muito, mas sei que é um poderoso, entretanto, eu conheço alguém que pode nos ajudar.
— Quem? — indagou Roderick.
— O demônio que tem um pacto comigo. Eu posso levar vocês para a morada desse demônio pelo mundo espiritual, mas vou logo avisando, demônios só ajudam com alguma coisa em troca.
— Não se preocupe, darei qualquer coisa que ele me pedir! — Disse o cavaleiro com segurança. Paulo ficou satisfeito com a resposta, já Valentim achava aquilo tudo um monte de bobagem.