Do alto do céu enegrecido pairava
uma espécie de ave de rapina. Digo uma espécie sem definir uma, porque ela
ainda não foi catalogada pela raça humana e provavelmente nunca será. Ela tinha
garras enormes e afiadas; um bico curvado e longilíneo; além de uma visão
aguçada. Esses atributos estão presentes em todas as outras de sua espécie. Ela
se diferenciava apenas por alguns pontos. Um observador atento poderia notar
que ela possuía duas cabeças, quatro asas e um par de guelras. A verdade é que
um desatento também notaria, mas creio que isso não o espantaria, uma vez que,
no reino dos demônios, tal criatura passava despercebida diante de absurdos
muito maiores por todos os lados.
Essa ave, que eu não me darei ao
trabalho de nomear, era uma criatura de hábitos simples. Caçava quando tinha
fome e dormia quando não estava caçando, apenas isso. Todavia, nesse dia em
especial, ela despertou um sentimento muito comum às outras criaturas vivas, que
foi a curiosidade. Durante toda a sua existência, ela esteve diante das
gigantescas paredes de luz. Elas eram um lugar comum no seu cotidiano, sempre
estiveram lá e parecia que ficariam lá para sempre. Parecia. Qual não foi a sua
surpresa ao ver que elas desapareciam. Uma a uma, elas foram se apagando. Os
gigantescos círculos luminosos evaporavam e os círculos menores apareciam para
logo serem apagados também, até que, em determinado momento, não restava mais
nenhum. Assim que a última barreira de luz desapareceu, o clima mudou. Um frio
glacial tomou conta de toda a atmosfera. Raios e trovões ressoavam por todas as
partes. Qualquer bicho esperto se esconderia, mas nossa ave foi corroída pela
maldita curiosidade. “Afinal, o que havia por trás daquelas paredes luminosas?”
pensou mais ou menos, ela. É evidente que ela não formulava palavras em sua
mente, mas sua curiosidade era essa. Então ela continuou a pairar e foi se
aproximando cada vez mais de onde seria o núcleo de toda aquela antiga
luminosidade.
Ela pôde perceber que não foi a
única picada pela curiosidade. Milhares de aves, de todas as espécies da
região, das quais eu não conheço nenhuma, se reuniram no centro de onde
antigamente havia os pilares de luz, para poder ver o que se passava por lá.
Elas podiam enxergar, logo abaixo dela, a centenas de metros, agrupavam-se
criaturas nunca antes vistas por elas. Eram todas bípedes, mas diferenciavam-se
bastante umas das outras, parecendo até pertecer a espécies diferentes. Algumas
ostentavam chifres das mais diversas formas e aspectos; outras tinham o corpo
repleto de pelos espessos, contrastando com a pele lisa e brilhante de outras;
a única coisa que tinham em comum, no entanto, era uma espécie de aura de
malignidade intrínseca a cada um deles. Eram milhares deles. Estavam em círculo
e cercavam um pequeno grupo de bípedes menores.
Os pássaros não entendiam bem o que
acontecia sob eles, mas não conseguiam distanciar-se. Assistiam passivamente o
desenrolar das ações. A maior das criaturas, que ostentava tranquilamente
dezesseis pés de altura, gargalhava incessantemente e era acompanhada por seus
pares. Gargalhadas tenebrosas e sinistras que mostravam não apenas alegria, mas
uma espécie de prazer sádico. A gigantesca criatura se dirigiu aos pequenos
intrusos em seu reino:
— Sim! Sim! Sim! — Gritava ele,
efusivamente. — Finalmente, depois de tempos imemoráveis, estamos livres.
Podemos sair daqui e começar a perpetrar nossa vingança.
— Não antes de nos pagar o que deve
— disse uma figura já bem conhecida dessa história, Paulo. — Você nos deve três
desejos e um cargo de general.
— Três desejos e um cargo de
general? Sim, parece que fiz realmente essa promessa — disse o demônio
conhecido com Magog. Ele voltou a gargalhar, e os outros demônios ao redor
também o fizeram. O som daquela nefasta cacofonia era aterrador. Facilmente
poderia ensandecer alguém. Dos quatro que estavam sendo cercados pelos
demônios, dois estavam atemorizados: Apollion e Valentim. O bandoleiro nunca se
imaginou em uma situação desse tipo e maldizia sua má sorte, já o pequeno
demônio se arrependia de ter se metido nessa história. Os outros dois não
demonstraram medo, muito pelo contrário. Paulo esbanjava confiança e soberba. O
que era esquisito naquela situação. Já o Roderick, embora cansado, demonstrava-se
alerta e pronto para combater.
— Não só parece como realmente foi o
que aconteceu, seu pedaço de lixo — disse Paulo com desprezo, para o desespero
de Valentim e Apollion. — Não me faça perder mais tempo do que já foi perdido.
O meu pedido, dá-mo.
— Ainda com essa falsa pedância? —
Vociferou Magog, passando da galhofa para a ira. — Sim, garoto, você me
libertou de meu tormento, mas isso não significa que pode falar comigo do jeito
que quiser. Não pense, nem por um momento, que lhe tenho gratidão. Esse
sentimento imundo foi feito para seres abjetos como os da sua raça. Você sabe
qual é o único motivo para que eu não parta o seu pescoço miserável agora?
— Eu apostaria que você quer me
chamar para algum tipo de suruba depois da reunião aqui.
— Sempre cheio de pilhérias, não é?
Ifnir estava certo. De nada vale o seu talento diante de sua personalidade
medíocre. Você tem razão, eu lhes devo três pedidos e um cargo de general para
Apollion. Por mais que eu queira arrancar a sua pele e fazê-lo comê-la, não o
posso enquanto não concretizarmos o nosso acordo. As leis que regem a minha
existência me obrigam a cumprir esse acordo, mas vocês podem desistir dele.
Veja bem, Paulo, eu não acredito que vocês mereçam desejos irrestritos. Com
exceção, talvez, de Roderick. Ele se mostrou uma criatura sublime e de poderes
inigualáveis. Eu acreditava ser tolice que ele conseguiria destruir as
barreiras de luz, mas ele conseguiu. Ele fez o que nenhum de nós demônios tinha
poder para fazer e, mesmo extenuado com tudo o que fez, ainda consigo sentir
nele uma energia aterradoramente poderosa. É como se ele realmente carregasse
consigo a aura e a força de todos os seus antepassados. O erro dele foi apenas
ter se aliado a um ser patético como você. Vocês são vermes tão asquerosos que
me dão nojo só de olhar. A sua mera existência faz com que eu tenha asco e
ânsia de vômito. Fornecer um desejo a você, em especial, seria a coisa mais
degradante que já fiz em toda a minha existência. Então, forneço-lhes outro
acordo. Vocês sabem que não os mato
agora por conta da dívida, mas, logo depois que eu a pagar, poderei fazer com
que sintam a mais excruciante dor antes que morram chorando e gritando por
perdão. Então, livrem-me da vergonha de lhes dar desejos irrestritos e eu os
outros demônios os pouparemos.
— Talvez isso seja algo a
considerarmos, Paulo — indicou Valentim.
— Não seja tolo — desdenhou Paulo. —
Nunca ouviu falar que o diabo é o pai da mentira? Ele só está com raivinha por
ter que nos conceder nossos pedidos e tentará de tudo para nos enganar.
— Então eles não poderão nos matar
depois de realizar nossos pedidos? — indagou o bandoleiro.
— Ah, não, isso é verdade. Eles
poderão, sim, nos matar e nos perseguir por toda a existência.
— Então esse desejo não faz sentido
— concluiu Valentim. — De que me adianta ter um desejo realizado se, na melhor
das hipóteses, morrerei imediatamente?
— Isso se dá pelo fato de que,
embora eles se vejam livres do impedimento de nos atacar, eles não podem com
Roderick. É isso mesmo, seu bando de mentecaptos imundos! Vocês estão borrados
de medo do Roderick. Se encostarem um dedo em qualquer um de nós, esse dedo
pode imediatamente aparecer enfiado nos seus rabos, junto com seus braços.
— Não sei, Paulo. Me parece muito
arriscado agir assim — disse Valentim, assustado pelo modo que os demônios
reagiram a mais uma das ofensas de Paulo. Eles estavam extremamente exaltados e
furibundos. Era incrível que ainda não haviam atacado.
— Nós somos os pais da mentira, você
diz — falou Magog —, mas é você quem diz inverdades. Sim, é verdade que não
entendemos a complexidade da força de Roderick, mas isso não significa que ele
seja mais poderoso do que nós…
— É claro que é, seu retardado —
interrompeu Paulo —, se ele destruiu as barreiras que vocês, diabinhos
pateticos, não conseguiam destruir, por óbvio ele é mais forte.
— Você se arrependerá de cada ofensa
proferida. Sim, ele pode ser mais forte, mas nada garante que ele possa nos
destruir. Somos seres celestiais, existimos há mais tempo do que a sua pequena
mente possa entender.
— Não me venha com essa. Vocês são
uns frouxos que só batem em gente mais fraca que vocês. Nunca se arriscariam a
entrar em uma luta sabendo que poderiam morrer. Deixe de querer nos enganar,
aqui somente o Valentim pode ser enganado por você, mas só porque ele não sabe
o pedaço de merda covarde que você é.
— Sim, monge — disse Magog tremendo
de fúria. — É bem provável que não consigamos enfrentar Roderick. No entanto,
seria ele capaz de proteger vocês? Talvez, hoje, sim, mas em todos os momentos?
Nós somos rancorosos e vivemos milhares de vezes mais do que vocês. Um dia
Roderick não estará ao lado de vocês. Então esse dia será o quando nos
vingaremos.
— Ele tem um ponto bem coerente,
Paulo — disse Valentim.
— Não tema, Valentim. Esse filho de
uma rampeira está blefando. Sabe por quê?
— Não — respondeu o bandoleiro.
— Por causa disso. Roderick, meu
querido, é verdade que você nos protegerá desses seres asquerosos.
— Sim — respondeu o cavaleiro
quebrando o seu silêncio. — Eu os protegerei com todas as minhas forças e não
terei piedade de ninguém que os ferir. Eu caçarei qualquer um que lhes fizer
mal por toda parte, e destruirei até o mais abissal dos demônios. Nenhum canto
da Terra ou do firmamento servirá de esconderijo para quem quer que lhes aflija.
Essa promessa será honrada por toda a minha vida e para além dela, devendo ser
cumprida por todos os meus descendentes, para todo o sempre, enquanto formos
aliados.
A firmeza e imponência gravadas na
voz do cavaleiro fizeram com que os demônios sentissem o sentimento que mais
gostava de provocar nos outros: o medo.
O mais genuíno e primordial medo invadiu suas almas e todos entenderam
que aquele homem não falava da boca para fora e que ele era capaz de cumprir
essa promessa. O próprio Valentim se viu amparado e suas dúvidas se esvaíram
diante de tão decidida promessa. Magog não tinha mais coragem de argumentar
contra aquele homem. Ele gesticulou com as mãos e uma magia foi invocada. O
corpo de Apollion foi cercado por uma fumaça. Quando ela se dissipou, ele
trajava não mais os trapos imundos de antes, mas sim uma imponente armadura de
general, dourada e adornada com runas mágicas. O pequenino demônio se alegrou
com aquele presente. Em sua miserável existência, ele nunca trajou nada tão
suntuoso.
— Então, cavaleiro — disse Magog se
dirigindo a Roderick —, cumprirei o acordo. Que seja você o primeiro a ter seu
desejo realizado.
— Eu quero saber onde estão minhas
protegidas. Quero a localização exata — disse o cavaleiro.
— Creio que você esteja sendo muito
simplista, Roderick — sugeriu Valentim. — Pelo que entendi, o desejo que ele
nos deve é irrestrito. Então, você pode simplesmente pedir para que elas voltem
em segurança para o castelo. Correto?
— Sim, seu amigo está correto. Eu
posso tornar isso realidade se esse for o seu desejo — anuiu Magog.
— Imagino que possa mesmo, no
entanto, devo recusar tamanha generosidade. Seria vergonhoso da minha parte que
minhas protegidas fossem resgatadas por outra pessoa que não fosse eu mesmo.
Prometi que as resgataria e cumprirei minha promessa. Quero saber apenas quem
as raptou e onde eu posso encontrá-las.
— Sua dignidade é curiosa,
cavaleiro. Talvez seja a única criatura no mundo a tê-la assim tão aflorada.
Não o compreendo, nem sua força, nem suas convicções, mas posso dizer,
envergonhadamente, que o admiro com a mesma força que o odeio. Sim, eu posso
facilmente cumprir com esse pedido. Deixe-me meditar por alguns segundos e eu
terei a sua resposta.
Magog sentou-se com as pernas
cruzadas e começou a entoar um cântico. Ele tinha os olhos fechados, mas
parecia concentrado em achar algo. Sua feição, inicialmente plácida, logo se
tornou áspera e carrancuda. Ele abriu os olhos, levantou-se ainda com a
expressão desgostosa e disse:
— Eu achei as meretrizes.
— Elas são as esposas de meu rei e
as principais criaturas por quem tenho zelo. Fico grato por tê-las achado, mas
não permitirei que profane a honra delas com ofensas — ameaçou Roderick de
forma velada.
— Sim, cavaleiro, achei vossas
mulheres — corrigiu-se Magog. — A razão de meu nojo é uma só. Elas foram
raptadas por uma bruxa — ao dizer isso, Magog cuspiu com asco ao chão. Atitude
que foi repetida por todos os demônios.
— Uma bruxa? — indagou o cavaleiro.
— Então elas realmente existem?
— Sim, essas malditas existem. Temos
uma relação bem diferente com os monges do que com elas. Nós emprestamos nosso
poder aos monges em troca de contratos, sejam por almas ou por qualquer outra
coisa que seja do nosso prazer, mas as malditas bruxas nos roubam. Bruxas são
ladras de todas as coisas, inclusive de magias. Elas também conseguem entrar
aqui no reino dos demônios, mas elas não negociavam conosco. Por algum motivo
que não sei explicar, elas conseguiam roubar nossa magia e os nossos poderes,
mas essa farra acabou. Agora que estamos livres, se alguma bruxa imunda
aparecer por aqui, faremos picadinho dela.
— E o que diabos uma bruxa iria
querer com as mulheres do rei de Catônia? — indagou o cavaleiro surpreso.
— Isso nem o diabo sabe, cavaleiro.
Elas roubam por ser de sua natureza. Eu creio, mas isso não importa mais. A
partir de hoje, elas também serão alvo de nossa vingança.
— E como foi que ela fez isso? Quem
roubou as mulheres de mim foi uma sombra negra. Apollion havia me dito que essa
era uma habilidade sua.
— E é mesmo. O que prova que a bruxa
que as roubou é bem poderosa. A desgraçada usurpou o meu poder de invocação das
sombras e utilizou-o para poder roubar vossas mulheres. Não tema pela segurança
delas; aparentemente elas não estão feridas, mas estão em um esconderijo,
localizado em uma floresta mística em um reino vizinho ao vosso. Eu poderia
apenas te dizer a localização e já pagaria minha dívida para com você, mas por
se tratar de uma bruxa imunda, te darei um mapa com a localização delas. Espero
que você a extermine — ao dizer isso, Magog levantou as mão e fez surgir fogo
no ar. Quando este se dissipou, dentro dele, surgiu um mapa que levitou até as
mãos de Roderick. O cavaleiro guardou-o. — Estamos quites, cavaleiro?
— Sim, meu pedido foi realizado.
— Agora vamos para o próximo —
concluiu Magog.
— Vamos logo para o meu — disse
Paulo. — Estou ansioso.
— Então, monge, cumprindo nosso
acordo. Qual é o pedido que deseja?
— Eu quero que todos os contratos já
feitos com os outros monges sejam cancelados, que vocês abdiquem de receber as
vantagens de todos os acordos. Eu estou falando de todos os contratos desde que
o mosteiro foi criado — o pedido surpreendeu a todos. Todos imaginavam,
inclusive seus aliados, que, pela personalidade dele, ele pediria algo
hedonista e egoísta, mas não, ele fez um pedido que para todos nem fazia
sentido.
— Isso é algum tipo de piada? —
indagou Magog surpreso, os demônios ao redor revoltavam-se.
— Nem tudo o que eu digo é piada,
Magog. Meu pedido foi bem claro. Quero que ele seja cumprido.
— Não posso fazer isso, peça outra
coisa — disse Magog, constrangido.
— Pode sim e vai fazê-lo.
— Você sabe que existe uma regra de
sobrescrição que…
— Sei muito bem como funciona a
regra. “Um demônio menor não pode sobrescrever um pacto de um demônio maior”. A
regra é bem simples, você é o maior dos demônios, líder absoluto desses cães
sarnentos, logo, somente você pode sobrescrever todos os pactos já feitos. Você
me deve um pedido irrestrito, então me pagará com este pedido irrestrito.
Vamos, adiante e realize o meu desejo.
— Peça outra coisa, Paulo — implorou
Magog. — Isso que me pede não é justo. Esses pactos foram todos assinados por
livre e espontânea vontade das partes. Pagamos a nossa parte e merecemos o
nosso pagamento.
— O que vocês merecem é um falo bem
grande enfiado nos seus rabos. Não me venha com coitadismo. É feio vindo de uma
criatura tão abjeta. Cancele agora todos os contratos feitos com os outros
monges.
— O que você ganha com isso, Paulo?
— indagou Magog desesperado.
— Já ganhei seu desespero. Agora
quero ganhar seu desalento. Quero ver vocês prostrados como os cães que são.
— Paulo, pense bem — implorou Magog.
— Você perderá um desejo irrestrito por uma simples pilhéria? Você pode pedir
qualquer coisa. Para ser rei; imortal; ter poderes tão grandes quanto os meus,
ou mesmo sentir todo o prazer do mundo para todo o sempre. Mude o seu desejo.
— Isso não é uma negociação, Magog —
disse Paulo de maneira resoluta. — Quero o meu pedido feito.
— Se você fizer isso, perderemos
muito. Séculos de trabalho e acúmulo de servos se esvairão. Todo o trabalho que
fizemos enquanto estávamos presos será perdido. Você não tem ideia dos pedidos
imundos que já fizemos para esses monges. Merecemos o pagamento por eles.
— Chega de me citar as vantagens.
Apenas faça.
— Os monges, seus aliados, também
sofrerão. Eles perderão os poderes dados por nós, voltarão a ser homens comuns.
— Já disse que não quero mais ouvir
as vantagens. Mais uma vez eu ordeno, cumpra a promessa.
— Se eu realizar isso, sabe muito
bem que não poderei conter a ira dos demônios. Eles trarão para cá todos os
monges e os matarão na sua frente. Afinal, se eles não pagam as suas dívidas,
merecem morrer. Também atacaremos vocês, independente de Roderick estar aí, ou
não. Ele é poderoso, é verdade, mas é apenas um, nós somos milhares. Ele está
cansado, talvez esse seja o único momento no qual possamos derrotá-lo.
Arriscaremos, nem que para isso tenhamos que perder metade do nosso exército.
Seu pedido imbecil terá consequências devastadoras. Insisto ainda uma última vez,
peça outra coisa.
— Cumpra o meu pedido.
— Você é um desgraçado, Paulo. Nossa
retaliação será sem precedentes — disse Magog furioso. Os demônios gritavam e
esperneavam, implorando para que Magog não obedecesse. — Por que me pedem isso
sabendo que não posso descumprir? Foi um maldito acordo, não posso descumprir a
minha parte. Sei que um pedido irrestrito é uma loucura, mas o que vocês
gostariam que eu fizesse? Se tratava da nossa liberdade. Farei o que esse
desgraçado pediu, depois cumprirei o pedido deste último inseto, após isso, nós
faremos como eu prometi. Traremos os monges e os mataremos. Depois, atacaremos
esses três humanos imundos e o traidor do Apollion. Nossa retaliação será
sublime. Não se entristeçam, afinal, somos praticamente imortais. Teremos tempo
para adquirir pactos novamente.
Magog mais uma vez sentou-se com as
pernas cruzadas, ao seu redor, os demônios choravam lágrimas de sangue e fogo.
O pânico deles era latente. Ele, para desespero dos outros demônios, começou a
entoar o cântico. Uma espécie de fogo azulado passou a cobri-lo. De dentro dos
corpos dos demônios começou a sair pergaminhos. Eles eram meio que expulsos dos
corpos e pareciam rasgar suas peles antes de sair, a ferida logo era
cicatrizada, mas a dor que aquilo causava era visível. Os pergaminhos levitavam
ao redor de Magog e incendiavam. Eram muitos, não apenas centenas, mas milhares
de pergaminhos foram incinerados. Apollion teve um único pergaminho removido de
seu corpo, enquanto os outros demônios tiveram dezenas e, alguns, centenas. A
onda de gritos de dor perpassava por todos os lugares. Valentim ainda estava
muito confuso com tudo aquilo e não conseguia imaginar um bom jeito de saírem
de lá com vida. Roderick esperava, impassivo, o ataque prometido pelos
demônios. Apenas Paulo demonstrava felicidade naquele momento. Uma genuína
felicidade que, naquele momento, só poderia sair de uma mente ensandecida. De
dentro dos corpos dos demônios começaram a eclodir luzes azuis. Elas saíam como
a tiros de fogos de artifício, mas não seguiram direto para o céu; ficaram
pairando sobre os demônios, fazendo giros no ar, como se fosse vaga-lumes.
Paulo brincava com essas luzes, que passaram a
circular por sobre o seu corpo. Valentim e Roderick notaram que aquelas luzes,
nada mais eram do que os espíritos dos monges que estavam aprisionados nos
demônios. Alguns seguiram caminho para o infinito, mas outros ainda ficaram por
lá, curiosos para ver o desenrolar da situação. Magog enfim terminou o ritual,
levantou-se e começou a desenhar runas no chão, os outros demônios passaram a
imitá-lo. Logo centenas de círculos de runas foram feitos, uma chama azulada
surgiu dentro de cada, quando evaporada deu lugar a um monge. Todos os monges
do monastério foram invocados ao reino dos demônios, e o massacre começou.