Era sua primeira vez fora de
Catônia desde que se tornara segurança do harém real. Diferente de seu pai que
travou guerras ao redor do mundo durante toda a sua vida como cavaleiro,
Augusto passou grande parte da sua existência preso ao seu reino de nascença.
Diógenes, tão logo Aurélio faleceu e legou sua missão de proteger o reino a seu
filho, teve Augusto sob seu comando e, nesse Ãnterim, conseguiu inúmeros
inimigos e sofreu diversas desgraças, por esse motivo tratou de prender Augusto
à incumbência de proteger seu harém, pois esse era o único meio que ele
encontrou de se proteger da maldição que era ter um Roderick a seu serviço. O
jovem cavaleiro não desconfiou, nem desconfia até hoje, ou talvez faça questão
de não entender, que proteger as mulheres do rei era apenas um subterfúgio para
prendê-lo no reino, deixando-o longe de confusões. Mesmo estando nesse claustro
por oito anos, Roderick nunca reclamou de seu serviço e sempre fez o seu melhor
para garantir a segurança das mulheres, e não teve muito trabalho para fazê-lo,
no máximo teve de quebrar um ou dois braços de bêbados atrevidos, isso, é
claro, antes do Sombra Negra. Roderick estava devastado por ter falhado em sua
missão, mas intimamente ele agradecia por poder participar de uma aventura; de
poder lutar e enfrentar desafios; de sair de Catônia e conhecer o resto do
mundo; e ele começava a gostar da companhia que conseguiu. Valentim se mostrava
cada vez mais uma pessoa sensata e um bom homem, diferente do bandoleiro sujo
que Roderick julgava que ele fosse; e Paulo, mesmo sendo louco, alcoólatra e
gostar de irritar as pessoas, tinha um magnetismo pessoal que fazia com que
você não o odiasse, Augusto, pelo contrário, gostava dele, embora não soubesse
explicar o porquê, isso fazia com que ele se sentisse mal por não ter se
apresentado corretamente. O que para Valentim era uma omissão benigna, para
Roderick era uma mentira torpe, mas ele havia dado sua palavra que não
revelaria sua ascendência, faltar com ela seria tão ruim quanto mentir, ou até
pior.
Estavam
próximos do topo da montanha, Paulo não se calava por motivo nenhum, ele sempre
tinha um chiste, ou mesmo uma pilhéria que Roderick já estava se acostumando a
aturar, mas Valentim se enfurecia e retrucava, o que gerava sempre mais
pilhérias. O bandoleiro aparentava não suportar o monge, mas o cavaleiro
suspeitava que, assim como ele, Valentim também gostava de Paulo sem saber dar
um motivo para isso e provavelmente se irritava por isso. A natureza é
esquisita, às vezes ela cria pessoas que fazem de tudo para serem detestáveis,
mas acabam sendo espirituosas e atrativas. O monge seguia, irritando e
divertindo seus dois companheiros de viagem quando, finalmente, chegaram ao
mosteiro, que era uma construção gigantesca, tão grande quanto um castelo. Ele
foi construÃdo na beirada da montanha e suas paredes eram interligadas com os
pedregulhos do precipÃcio, apresentava três torres colossais, sendo a do meio
maior e mais espessa que as das laterais. Uma catedral com centenas de metros
de comprimento servia como entrada do mosteiro. Várias edificações menores, com
estrutura retangular, constituÃam o refeitório, a biblioteca e os dormitórios
dos monges.
—
Bem, cavalheiros, chegamos — disse Paulo com um sorriso estampado no rosto. —
Apresento a vocês o Mosteiro do Inferno. Valentim provavelmente vai se sentir
em casa.
—
Vai à merda, Paulo — respondeu Valentim de forma mecânica, sem se importar
muito com o monge, pois ainda estava maravilhado em observar o mosteiro. — É
muito lindo, nunca vi uma obra arquitetônica desse porte, se eu ainda fosse
lÃder dos bandoleiros eu gostaria de conhecer o arquiteto que fez essa
venustidade.
—
Foi o próprio Ifnir que entregou o projeto, não me lembra se foi Satã ou o
Belzebu quem realmente desenhou — falou Paulo com a mão no queixo se mostrando
pensativo.
—
Deixe essa baboseira mÃstica para quem acredita nela — debochou Valentim.
—
Não brinque com o que você não entende meu amigo, interagir com demônios é
real, assim como também é real fazer uma mulher sentir prazer, você só não sabe
como fazer — Valentim tentou dar um tapa em resposta, mas Paulo esquivou
enquanto gargalhava do outro. — Não se irrite se a verdade for dolorosa.
—
Parem de brincadeira vocês dois — ralhou Roderick. — Não há tempo a perder. Paulo,
você vai solicitar a autorização para a nossa entrada?
—
Não, por céus, não! — exclamou Paulo. — No mosteiro só são permitidos monges,
em nenhuma hipótese vocês terão autorização para entrar. Para falar a verdade,
nem eu tenho mais autorização de entrar, me disseram que se eu tentar novamente
seria enforcado.
—
Como assim? — perguntou o cavaleiro. — Você disse que nos levaria para dentro
do mosteiro.
—
Quanto a isso, não se preocupe, vou levá-los para dentro, porém, vocês serão
invasores, mas eu também vou ser, então, estaremos quites.
—
Isso não me parece uma boa ideia, Augusto — falou Valentim. — Melhor tentarmos
entrar pela frente solicitando permissão.
—
Boa sorte, a última vez que deixaram alguém que não é monge ir até lá, foi
quando isso aqui ainda era só uma montanha. Vocês pediram a minha ajuda e eu
estou dizendo que o único meio é invadindo o mosteiro.
—
Ele tem razão, Valentim, vamos confiar nele.
—
Você que é o chefe aqui — disse o bandoleiro com resignação.
—
Muito bem, como nós vamos invadir esse mosteiro? Qual é a melhor rota, Paulo?
—
Ah, isso é muito fácil. Vamos entrar da mesma maneira que os monges usam para
escapulir. Vamos escalar a parte do mosteiro que fica para a montanha.
—
Ah não, Augusto, isso já é demais. Não podemos seguir esse louco nessa
imbecilidade. O despenhadeiro tem centenas de metros de altura, deve haver um
jeito mais fácil de invadir essa pocilga.
—
Não seja frouxo, meu bandidinho. Não tem alternativa, o mosteiro é guarnecido
em todos os pontos, são milhares de monges protegendo todas as suas entradas.
Eu sei muito bem que o Matador das Estrelas aà pode entrar por onde quiser, mas
nós dois não, eu morreria só de pensar em me defender e você não teria um
destino muito diferente do meu. Outra coisa importante é que precisamos chegar
à minha sala de meditação e devemos estar relaxados para entrarmos no reino dos
demônios. Acho que será muito difÃcil fazer isso se milhares de monges forem
atrás de nós.
—
Faz sentido, Valentim. Será melhor se escalarmos como ele sugere. Não se
preocupe, eu sou bom em escaladas.
—
Estou preocupado é comigo, você eu já sei que você sabe fazer tudo.
—
Estou dizendo que vou protegê-lo, não se preocupe, você não cairá.
Por
fim, Valentim acabou cedendo ao plano de Paulo, pois ele mesmo era um bom escalador,
cortesia de seu finado mestre Baltos que lhe ensinou toda a arte do banditismo,
que varia entre acrobacia, atletismo, punga e lábia. Escalar aquele paredão não
seria tarefa difÃcil, mas ele faria a contragosto, pois ele confiava mais nas
promessas de amor de uma meretriz do que nos planos do monge. Paulo os levou
por um caminho remoto, que seguia direto para o precipÃcio, próxima a ele havia
diversas pedras de grande porte, o monge afastou algumas e descobriu um baú, de
dentro dele Paulo tirou algumas cordas e alguns mantos de monge.
—
Vistam isso, é bom que estejam disfarçados de monge caso aconteça alguma
eventualidade inesperada.
—
O que esse baú está fazendo aqui fora com essas coisas? — perguntou o
bandoleiro com curiosidade enquanto pegava um dos mantos e vestia.
— Eu usava com alguns amigos
quando fugÃamos do mosteiro para irmos à Viseu.
—
E esses seus amigos estão no mosteiro? Eles podem nos ajudar? — perguntou o
cavaleiro depois de vestir seu manto.
—
Ah, não, já morreram todos — disse Paulo enquanto fazia o sinal da cruz e
amarrava uma corda em sua cintura.
—
Morreram de quê? — indagou Valentim.
—
Ah, várias coisas. Teve o Vladimir que bebeu até morrer em uma noitada em
Viseu; teve o Alex que se meteu em uma briga em Viseu e os guardas acabaram
enterrando ele vivo para que ele não trouxesse problema para a cidade; teve o
Carlos que caiu do precipÃcio; teve o…
—
Como assim caiu do precipÃcio? — se assustou o bandoleiro. — Fazendo essa mesma
subida que nós estamos fazendo?
—
Não, para ser sincero, ele estava descendo, mas não precisa se preocupar, ele
caiu porque era muito gordo — falou o monge com certa indiferença.
—
Eu sinto muito por suas perdas, Paulo — disse o cavaleiro.
—
Pois é, eles eram legais. Depois que eles morreram, eu fiquei sem amigos. A
mais triste foi a morte do Salvador, ele pegou alguma doença das meretrizes e
ficou cheio de feridas por todo o corpo, morreu se coçando e agonizando, com
várias bolhas cheias de pus em todas as partes.
—
Eu também sinto muito, Paulo — disse Valentim se condoendo das perdas do monge.
—
Obrigado pelas condolências. Salvador era um camarada gente boa, ele ficaria
feliz em saber que você ficou com o manto que ele usou antes de morrer,
Valentim.
—
Que merda, Paulo. Você me deixou vestir o manto desse lazarento — disse
Valentim tirando rapidamente o manto e jogando-o do precipÃcio. Ele se coçava
como um louco, derramou água em seu corpo e ficou se esfregando para limpar-se
— Seu desgraçado, se eu pegar alguma doença a culpa será sua.
—
Quanta agressividade — disse Paulo enquanto Valentim vestia outro manto. — Está
com nojo porque ele se deitava com cortesãs, mas se fosse com os cortesãos não
tinha problema?
—
Estou com nojo porque ele morreu com uma micose de pele, seu babaca, isso é
contagioso.
—
Oh, é mesmo, não é muito higiênico usar o mesmo manto que ele — disse Paulo.
—
Não me diga? — disse Valentim com escárnio. — Obrigado por nada, mas já troquei
de manto.
—
Estou falando isso porque esse outro manto que você está vestindo também era
dele — mal o monge terminou de falar, Valentim pulou em cima dele e começou a
estrangulá-lo, foi apenas o intermédio de Roderick que evitou uma tragédia. O
bandoleiro estava enlouquecido de fúria, enquanto o monge gargalhava até
chorar, inclusive o cavaleiro, conhecido por sua sisudez, ria da situação.
Foi
preciso muita paciência e diálogo da parte de Roderick para convencer Valentim
a escalar o mosteiro, ele estava irredutÃvel, queria voltar ou matar o monge
ali mesmo, no fim o cavaleiro acabou convencendo-o, afinal ele não podia mais
abandonar a missão, pois não tinha mais para onde ir e estava sendo perseguido
por um grupo de assassinos que somente Augusto poderia fazer frente. Aceitou
subir e deixar para matar Paulo depois que eles descobrissem algo sobre o
Sombra Negra.
Os
cavalos ficaram amarrados em um canto escondido, também apresentado por Paulo.
A escalada não foi difÃcil, inúmeros monges no decorrer dos séculos haviam
moldado aquela passagem para facilitar suas escapulidas. Havia pinos para as
cordas, as pedras tinham saliências para apoiar as mãos e os pés na escalada e,
em alguns pontos, escadas talhadas na rocha tinham sido construÃdas. Paulo ia Ã
frente, pois conhecia o caminho para seu quarto; logo após, vinha Roderick,
seguindo passo a passo os movimentos do monge; por último ia Valentim,
enfurecido e certo de que algo daria errado. Seu vaticÃnio se mostrou correto.
Por entre as nuvens começou
a surgir um pássaro, curiosamente Valentim havia parado um pouco a escalada
para ver o horizonte. Mesmo a uma distância considerável ele podia ver o
pássaro, ele logo notou que se tratava de uma ave de rapina, provavelmente um
falcão, mas tinha algo de estranho nele. Quanto mais ele se aproximava, maior
ele parecia ser, até o momento em que Valentim notou que aquilo não era
impressão, mas sim uma realidade bizarra. O bandoleiro reparou que o pássaro
não era grande para sua espécie, ele era gigantesco, do tamanho, ou talvez
maior, de um homem adulto. Ele não teve muito tempo para ficar surpreso, pois o
falcão gigantesco não estava apenas voejando a esmo, na verdade ele tinha um
objetivo, que era caçar. Um animal daquele tamanho poderia caçar até mesmo
seres humanos e Valentim teve o azar de ser ele a sua presa. O ataque veio
rápido, as garras que mais pareciam navalhas caÃram em riste na direção do
bandoleiro, que por puro reflexo conseguiu dar impulso com as pernas na rocha e
esquivou-se do golpe, mas as garras atingiram sua corda, cortando-a como se
fosse apenas um barbante.