O quarto estava escuro, apenas alguns filetes de claridade adentravam pelas frestas da janela, mas não o suficiente para se enxergar com nitidez. Diógenes deitava esparramado em seu tálamo, sozinho, pois nunca quis casar-se. Não confiava em uma pessoa ao seu lado enquanto estava dormindo. Dizem que o que os traidores mais temem é a traição, com o rei não era diferente. Ele, que já havia mandado matar dezenas de pessoas enquanto dormiam, não conseguia dormir direito, com receio de ter o mesmo fim. Entretanto, seu maior medo, o que ele não conseguia esconder, que mesmo sendo a pessoa mais importante e influente do mundo o fazia tremer, era Roderick, mas nem sempre fora assim.
Quando novo, Diógenes odiava Catônia com todas as suas forças e tudo era culpa de seu pai, o rei Dioniso. Ele foi criado na corte desde que havia nascido, mas não vivia nos mesmos aposentos que os seus irmãos, pois ele era um bastardo, não o único, mas com certeza o mais bastardo de todos. Dioniso foi um rei forte, inteligente, bondoso e um mestre estrategista, no entanto, seu maior problema era a promiscuidade. Todas as suas excelentes qualidades se equiparavam com sua perversão sexual. Todo mundo conhecia o pervertido real de Catônia, conhecido por criar templos de adoração sexual e dedicar grande parte do seu governo a torná-los paixão nacional, o que, por motivos óbvios, ele conseguiu sem muita dificuldade. Em seu reinado, Catônia viveu um perÃodo de grande devassidão e paz. É bem certo que toda paz é proveniente de guerra, a de Dioniso não foi diferente. Ele enfrentou duras batalhas contra as nações vizinhas, sua grande força de comando e capacidade estratégica tornaram Catônia imbatÃvel. Ao derrotar seus oponentes, o antigo rei não impunha um reinado de terror ao derrotado, ele julgava, como o pervertido que era, que a paz deveria provir do ato sexual, então ele casava-se com a princesa do reino vencido e fazia nela um filho seu, para estreitar os laços de união após a luta. Dioniso fez isso com sete reinos, tinha sete esposas e sete filhos legÃtimos, consequentemente sete herdeiros de seu trono, todavia, não era só aà que acabava a progênie do rei. Ele também fazia acordos com poderosos nobres, ricos a ponto de terem exércitos particulares. Esses nobres queriam o sangue real em suas famÃlias, por isso pediam que o rei engravidasse as suas filhas em troca do empréstimo de seus exércitos, tarefa que o rei fazia com muito prazer. Sete alianças fez o rei, sete filhas de nobres ele engravidou, por isso sete bastardos de sangue nobre ele teve, esses constituÃam a segunda linha de sucessão ao trono. O único filho que ele teve com uma mulher que amava fora Diógenes. Seu grande amor era a mais condecorada das sacerdotisas do coito, mas não tinha sangue real e nem nobre, por isso Diógenes era o mais bastardo dos filhos de Dioniso. Seus irmãos humilhavam-no, chamavam-no de filho da velha bêbada, diziam que todos os homens do reino já haviam dormido com sua mãe. O que deixava o bastardo mais enfurecido era o fato de tudo o que diziam ser verdade. Seu martÃrio chegou ao ápice quando alguns dos seus irmãos foram dormir com a sacerdotisa para troçar dele. A corte bajulava os primeiros filhos de Dioniso e respeitava a segunda linhagem, no entanto, desprezava Diógenes solenemente. O rei amava-o, mas isso não significava nada, já que o rei amava todo mundo e não tinha tempo para dedicar aos filhos. Tudo isso enfurecia Diógenes, que, dia após dia, ia aumentando seu asco por seu pai, irmãos e pela corte.
Diógenes não podia ficar em Catônia com toda a falsidade e o desprezo ao seu redor. Ele adquiriu repulsa à promiscuidade por causa da ocupação de sua mãe e, por isso, nunca foi vê-la. Ela nunca chegou a conhecê-lo, pois o rei levou o garoto para ser criado no castelo logo depois do seu nascimento, uma vez que uma sacerdotisa deve se dedicar integralmente à sua sagrada missão sexual e não poderia criá-lo. Quando teve idade suficiente para levantar uma espada, mais ou menos com treze anos, foi à guerra e decidiu que não voltaria mais à corte do reino. Todo o seu desprezo e toda a sua fúria tornaram-no um guerreiro Ãmpar, pelo menos assim ele achava antes de conhecer Aurélio Roderick. Diógenes era forte como um touro, podia esmagar o crânio de um homem com um soco, derrubar um cavalo com as mãos nuas, até mesmo arrebentar escudos com uma marreta. Ele logo passou a ser conhecido e temido, principalmente por sua crueldade e frieza diante da morte, para ele não havia clemência aos derrotados. Durante muito tempo, Diógenes se achou imbatÃvel, mas tudo acabou quando ele conheceu Aurélio Roderick. O cavaleiro ainda não havia sido apresentado ao bastardo porque por muitos anos ele esteve longe, em uma missão para Dioniso, quando ele voltou foi à guerra contra Ishtania. Foi nesse perÃodo que Diógenes pôde conhecer e ver como um Roderick era excepcional. Não havia esforço nas batalhas, não havia oponente à altura, ninguém podia pegá-lo desprevenido. Por diversas vezes ele salvou o exército de emboscadas, mas o que mais assustava Diógenes era o preço que tudo aquilo custava. Todas as ações de Roderick geravam desastres, diariamente pessoas em busca de vingança vinham até ele, o que seria muito normal se fossem apenas guerreiros, mas viúvas, órfãos e mães também vinham chorar e amaldiçoá-lo. Em certa ocasião, em uma batalha, por coincidência, ele acabou por matar todos os homens de uma cidade, deixando o resto da população, que era de mulheres dependentes dos maridos, crianças, velhos e doentes, sem ter com o que se sustentar. Já incendiaram uma floresta para matá-lo, no fim só quem morreu foram os homens que a incendiaram, a floresta e inúmeros inocentes. De todas as desgraças que Diógenes já viu serem causadas por Roderick, a maior foi a que o próprio bastardo fez por intermédio do cavaleiro.
Aurélio Roderick não gostava de Diógenes, sempre que o podia deixava isso claro, o motivo era um só, o bastardo era mau. Talvez o adjetivo mau não seja o suficiente para descrever o que Diógenes era. Talvez perverso se aproxime, mas diabólico é muito mais adequado, visto que o homem fazia coisas que apenas demônios fariam. A guerra sempre traz à tona os piores dos homens, o bastardo era um desses. Ele aproveitava-se da luta para ordenar o estupro de mulheres, degolar velhos e enforcar crianças. Roderick odiava covardia, de todas as espécies, mas não podia fazer nada contra um aliado de Catônia, principalmente por se tratar do filho do rei, que molestava inimigos do reino, no entanto, aquilo o enfurecia sobremaneira. Ele nada dizia, mas a fúria estampada em seu rosto não podia ser escondida. Diógenes gostava de irritar o cavaleiro, uma vez que ele era novo e tolo, acreditava que podia enfrentar um Roderick, por isso gostava de fazer malignidades na frente do outro, que se irritava, mas nada fazia, o que o bastardo, tolamente, julgava ser covardia. O cavaleiro evitava estar nos mesmos lugares do bastardo e logo eles ficaram em batalhões separados.
Diógenes gostava de assaltar mansões Ishtanianas. No perÃodo em que tinha aproximadamente dezoito anos, ele comandava um batalhão de duzentos homens. Malquintam era um dos homens mais ricos de Ishtania. Boatos diziam que ele nadava em ouro, que suas vestes eram todas cobertas de brilhantes e até o mais pobre de seus súditos tinha dinheiro suficiente para comprar uma cidade. O bastardo juntou seus homens, que constituÃam uma espécie de batalhão especial, formados pelos maiores biltres do exército Catoniano, escolhidos a dedo por ele, para pilhar a mansão deste magnata casacudo. A mansão do Ishtaniano era diferente de tudo o que Diógenes já vira na vida. Ela não era apenas gigantesca, mas era perfeita em todos os seus detalhes, em todas as paredes e pilastras havia pinturas e artesanatos que só podiam ter sido feitos à mão. O bastardo calculou que mil homens teriam que trabalhar sem descanso por um ano para construir algo que se assemelhasse à quela obra de arte. Embora não fosse o seu forte, o cálculo não era exagerado e talvez não bastasse. O bastardo também calculou que as riquezas que poderiam estar guardadas em uma mansão tão colossal poderiam fazer um homem controlar o maior exército de mercenários do mundo, com algo do tipo ele poderia se vingar de Catônia e assumir um cargo de lÃder de guerra para a vergonha de seu odioso pai e seus detestáveis irmãos.
Munido de seus duzentos homens, Diógenes invadiu a mansão e iniciou uma carnificina. Ordenou que seus soldados não deixassem nenhum homem vivo e nenhuma mulher sem ser violada, assim eles o fizeram. Curiosamente, a mansão não tinha guardas, apenas servos domésticos, que eram muitos, uma vez que eram necessárias milhares de pessoas para fazer a manutenção do casarão. Todos esses servos foram mortos, brutalmente e sem piedade, sem conseguirem ao menos reagir diante de homens armados e treinados. As únicas exceções foram de algumas mulheres que eram bonitas demais para serem descartadas tão rapidamente. Diógenes dominou a mansão sem ter nenhuma baixa entre seus homens, mas não chegou a encontrar Malquintam, muito menos seu ouro, mas a mansão por si só já era valiosa o suficiente para torná-lo um dos homens mais ricos do mundo. O bastardo e seus homens decidiram ficar nela alguns dias antes de pilharem-na para venda.
A chegada da noite trouxe martÃrio para as sobreviventes, durante muito tempo elas sofreram nas mãos dos soldados, muitas morriam devido à grande violência a que eram submetidas. Diógenes não participou dos abusos, não porque tivesse pena das vÃtimas, mas sim porque estava extasiado com sua conquista, com ela, ele finalmente poderia vingar-se de seus familiares e tornar-se importante no reino que tanto o desprezou. Ele contentava-se apenas em ouvi-las sofrer, para seus ouvidos, era um cântico em sua homenagem. Ele ficou só, no quarto do nobre Malquintam, estirado em uma grande cama revestida de ouro e pedras preciosas, de lá ele ouvia a agonia das servas ao serem violadas, mas algo veio transtornar sua calmaria e felicidade, justamente aquilo que o agradava, veio atormentá-lo.
Os gritos, que inicialmente eram de mulheres sofrendo, começaram a ser emitidos por homens. Eram gritos de dor e desespero, de pessoas com medo da morte. Aquilo assustou Diógenes sobremaneira, ele podia reconhecer que aqueles sons eram de homens sendo assassinados e, pelas vozes, era bem claro que eram seus homens. Ele levantou-se da cama, pegou seu martelo de batalha e ia sair, mas não teve coragem, acabou esperando em frente à porta. Os gritos foram cessando cada vez mais, Diógenes soube que era porque seus homens estavam acabando. A adrenalina invadiu seu corpo, a tensão de esperar por oponentes que provavelmente o matariam fez com que ele entrasse em furor. Onde havia medo surgiu o Ãmpeto. Ele apertou seu martelo de batalha com toda a força que tinha, a ponto de fazer seus dedos estalarem, deu um grito e ficou a postos para qualquer homem que entrasse pela porta, mas seus inimigos não vieram pela porta. Ishtanianos pularam pelas janelas, por passagens secretas escondidas atrás de quadros e tapetes, outros vieram pelo teto, as dezenas logo viraram centenas. Em instantes, o bastardo estava cercado. Ele ainda pensou em matar alguns antes de ser pego, mas quanto mais homens apareciam, mais seu Ãmpeto desaparecia, logo o medo voltou, o desespero o fez largar o martelo e levantar as mãos em sinal de rendição. Não demorou muito para sentir um golpe na nuca que o fez desmaiar.
Acordou com a vista embaçada e uma dor de cabeça tão forte que lhe deu ânsia de vômito. Pouco a pouco sua visão foi ficando mais nÃtida e ele pôde distinguir o que estava acontecendo ao seu redor. Ele e alguns dos seus soldados que haviam sobrevivido estavam amarrados em crucifixos. Contornando-os havia um exército tão grande que ele não conseguiu estimar a quantidade de homens apenas pelo olhar, mas ele supôs que era um dos maiores exércitos que ele já tinha visto. O que ele achou mais curioso não foi esse gigantesco poder bélico, mas sim o céu, ou a falta dele. Quando olhou para cima, o bastardo notou que havia um teto onde eles estavam, como se eles estivessem dentro de uma caverna gigantesca. Malquintam apareceu por entre o exército e começou a entoar um cântico, que todos os soldados acompanharam, era uma espécie de brado de guerra. Os homens de Diógenes choraram e espernearam, pedindo clemência, mas a canção abafou suas vozes. Malquintam empunhou uma lança e começou a estocá-los, um a um, implacável e impiedosamente, mas sem ódio, apenas como se cumprisse uma tarefa. O bastardo entrou cada vez mais em desespero à medida que seus homens iam se acabando e o nobre se aproximava cada vez mais dele.
Nesse Ãnterim, tornou-se mister apresentar Malquintam e seu plano para acabar com a guerra para que estas lembranças tenham sentido. Catônia representava poder e glória, era a maior nação do mundo e suas terras prosperavam a plenos pulmões. Toda essa calmaria tinha um preço. Nesse caso, era a inveja e a cobiça de todas as nações estrangeiras. Todos eram inimigos de Catônia, mas uma vez que ela tinha a maior prosperidade, ela também tinha o maior poderio bélico de que se tinha história, então, pela força, ela domava e mantinha a rédea das nações menores, mas sempre que uma era dominada, outra se insurgia, fazendo com que a guerra contra Catônia fosse infinda. Ishtania era, historicamente, a sua maior inimiga, nunca dominada por grandes perÃodos, estava sempre pronta para a guerra. Malquintam era um estudioso de grande renome no mundo, inteligente como poucos, odiava a guerra por tudo o que perdeu e viu perderem por ela. Ele escreveu inúmeros estudos sobre a paz e todos eles concluÃam que, para que ela ocorresse, Catônia deveria ser destruÃda. Ele partia do pressuposto de que o mundo estava em guerra havia muitos anos, essas batalhas coincidiam com o perÃodo em que Catônia deixou de ser um aglomerado de pequenas tribos que se destruÃam, para virarem uma gigantesca nação que destruÃa as suas vizinhas. Malquintam gostava de lembrar que Catônia nunca havia sido derrotada, que ela sempre vencera suas batalhas, mas que isso nunca trouxe paz para ela, nem para o mundo, as suas vitórias só geravam mais guerra. Sua inteligência acima da média fez com que ele também fosse uma grande máquina de fazer dinheiro, em tudo o que ele investia rendia. Ele conseguiu se tornar tão rico quanto uma grande superpotência mundial.
Malquintam usava todo o dinheiro que havia conquistado na vida para conseguir o que mais almejava, a paz. Para isso ele precisava destruir Catônia. Montou um plano por muitos anos, ele consistia em construir uma fortaleza disfarçada de casa, torná-la luxuosa e pomposa para que não descobrissem que em seu subterrâneo abrigava um exército. O casarão foi construÃdo primeiro, seus funcionários eram tratados com lordes, ganhavam muitÃssimo bem, a única coisa que Malquintam lhes pedia em troca era silêncio absoluto sobre a construção subterrânea secreta que ele fez, tão grande quanto a casa, que podia abrigar centenas de milhares de homens. Nela foi feito um centro de treinamento. Esse lugar era tão secreto que nem mesmo o governo de Ishtania sabia de sua existência. Por décadas Malquintam foi forjando esse exército, fez contratos vitalÃcios com os maiores mercenários do mundo para que eles fossem professores, adotou órfãos de todas as nações para colocá-los em seu subterrâneo secreto, fazendo deles soldados, que ficavam confinados, esperando o momento em que estariam em um número tão grande que subjugaria até mesmo o exército de Catônia. O ataque de Diógenes não entrava em seus cálculos, pois não era costume de Catônia roubar mansões, ele veio nublar os planos de Malquintam, pois seu exército já era grande, mas não o suficiente para derrotar o de Catônia, não era tempo dele ser descoberto ainda. Ele teria muito trabalho para realinhar seu plano, precisaria contratar milhares de funcionários para a mansão, criar milhares de falsos motivos para o desaparecimento de seus funcionários mortos, pagar indenizações a todas as famÃlias e, por último, matar todas as testemunhas. Ele não sentia prazer em matar, pelo contrário, detestava com todas as forças de seu ser, todos que o conheciam sabiam disso, mas, quando necessário, fazia questão de matar com as próprias mãos, para mostrar aos soldados que ele também podia fazer sacrifÃcios. Ele ensinava pelo exemplo. Seu cântico era um pedido de desculpas. Ele pedia perdão por ter que matar, mas alegava que tudo era pela paz.
Malquintam terminou de matar todos os homens de Diógenes e se encaminhou até ele, entoou o cântico, seus soldados o acompanharam. Ele se preparou para desferir o golpe, quando algo impediu a execução. Todo o local era iluminado por tochas, essas eram protegidas por sentinelas. Ocupados com as execuções, nem os soldados, nem Malquintam notaram que as luzes se apagavam, uma por uma elas iam se extinguindo, até que, no momento que o golpe fatal seria aplicado em Diógenes, de repente, tudo ficou um breu. Uma grande balbúrdia tomou conta do esconderijo, os soldados praguejaram. Os generais gritaram ordens, debalde, nada era ouvido no meio da confusão. O instinto de todos alertou que eles deveriam sair de lá, por isso muitos seguiram para as saÃdas secretas, mas todas se encontraram fechadas. Eles estavam presos no escuro. Outros tentaram acender a iluminação, mas, por algum motivo, desapareceram no meio do caminho. Logo eles perceberam que muitas vozes começavam a se esvair, então eles notaram que os soldados não estavam desaparecendo, mas sim caindo mortos. Eles estavam sob ataque, isso se tornou óbvio.
As mortes, que inicialmente eram silenciosas, gradualmente deixaram de ser. Os homens gritavam antes de serem assassinados. Ninguém conseguia ver nada, apenas ouviam os sons das mortes. Os Ishtanianos ficaram aflitos, tentaram desesperadamente se defender ou fugir, mas não enxergavam seus inimigos e as saÃdas estavam bloqueadas. Um dos homens conseguiu acender uma tocha, foi nesse momento que puderam ver que não estavam sendo atacados por inimigos, mas por um só. Tudo foi muito rápido, alguns disseram que era um cavaleiro, mas a maioria concordou que se tratava de um demônio. Não demorou muito para que o homem com a tocha caÃsse ao chão com a cabeça arrebentada por uma machadinha e as luzes voltaram a se apagar e as mortes voltaram a acontecer. Logo os homens que inicialmente julgaram ser um cavaleiro mudaram de opinião, só um demônio poderia matar com tanta facilidade, no escuro, sem que desse chance para que revidassem.
Diógenes também viu a figura, não com nitidez, mas, para seu espanto, era uma figura conhecida, mesmo tendo sido muito rápido, ele sentiu que a conhecia. Ele assustou-se ao supor que se tratava de Aurélio Roderick. Os soldados tentaram desesperadamente fugir, mas eles morriam aos montes, golpes limpos de espada varavam homens como se fossem pedaços de bambu. Os golpes eram tão bem aplicados que matavam instantaneamente, muitas vezes não dando tempo nem de as vÃtimas gritarem depois de acertadas, por isso demorou para que eles entendessem o que estava acontecendo. Alguns desesperados tentaram se defender dando golpes a esmo, mas, no escuro, acabaram acertando seus aliados. Logo isso começou a se repetir com mais frequência, dentro em pouco os soldados acabaram lutando entre si.
O bastardo ficou mais assustado com a possibilidade de ter um aliado ajudando, do que quando Malquintam foi lhe dar a estocada. O tempo passou rápido e com ele a vida de muitos homens foi extinta. Cada minuto levou embora dezenas de almas, algumas rapidamente, outras de forma brutal, levadas por golpes acidentais, causados pelos próprios aliados. Esses não foram limpos e não mataram instantaneamente; mutilaram e deixaram as vÃtimas agonizando. Diógenes não tinha ideia se iria sobreviver, talvez ele até quisesse morrer logo de uma vez, tudo para não ter mais que estar ali, ouvindo todo aquele sofrimento, sem saber se seria o próximo ou não. Muito tempo se passou, ele não soube dizer se foram algumas horas ou se foram alguns dias, o importante é que, em determinado momento, os gritos pararam, o som de homens se movimentando sumiu, apenas um arfar exausto pôde ser ouvido pelo bastardo. Era assustador notar que aquela respiração ofegante se aproximava cada vez mais dele. Diógenes implorou aos berros para que ele se afastasse, mas cada vez mais a respiração se aproximou dele. Ele ouviu claramente o som de alguém escalando o crucifixo e subindo até as suas costas. O desespero do bastardo foi tão grande que ele evacuou nas calças tudo o que pôde. O arfar estava em seu pescoço quando ele ouviu:
— Vai chegar o dia em que estaremos em lados contrários e será você quem conhecerá a minha lâmina — falou a voz arfante.
Ele não chegou a ver, mas sabia exatamente quem era. Aquela voz se tornou inconfundÃvel para ele, era Roderick. O maldito Aurélio Roderick. O cavaleiro libertou apenas uma mão do bastardo e foi embora, sem dizer mais nada. Diógenes ainda ficou um bom tempo no crucifixo, terrificado com o augúrio que o cavaleiro proferiu. Só depois de muitos minutos foi que ele conseguiu criar ânimo para escapar. Com muito trabalho ele conseguiu desatar os nós que lhe prendiam no crucifixo e caiu ao solo. Só não se esborrachou porque caiu em cima de alguns cadáveres. Ele tentou fugir do esconderijo, mas demorou horas tropeçando em corpos antes de encontrar a saÃda. Quando finalmente ele conseguiu sair, encontrou uma tocha e, por algum motivo nebuloso, ele sentiu vontade de voltar ao esconderijo para ver o que aconteceu. Ele voltou e acendeu as tochas que haviam sido apagadas. O que ele viu lhe deixou assombrado. Defuntos em todos os cantos. Pelo menos dez milhares de cadáveres ocupavam o salão secreto de Malquintam. Ele saiu de lá cambaleando, convencido de que o cavaleiro não poderia ser um homem, mas sim um demônio. Desde esse dia as palavras de Aurélio não saÃram de sua cabeça. Ele nunca mais conseguiu dormir direito, temendo o dia em que teria Roderick do lado inimigo do seu.
Muitos anos se passaram sem que Diógenes entendesse o que aconteceu naquele subterrâneo, como Roderick foi parar lá e por que ele o ajudou. Foi apenas quando virou rei que descobriu, nos papéis secretos do rei Dioniso, o relato da missão que Aurélio Roderick havia entregue. Nele o bastardo ficou sabendo que os espiões de Catônia desconfiavam que Ishtania tinha um plano de fazer um grande exército. Acreditavam porque vários mercenários sumiram ao redor do mundo, assim como órfãos eram adotados por famÃlias e ninguém ouvia mais falar deles. Roderick foi incumbido de descobrir o que estava acontecendo. Depois de muito perambular em busca de informações, ele concluiu que tudo girava em torno de Malquintam, pois todos os locais onde aconteciam esses desaparecimentos foram visitados por ele. O cavaleiro suspeitou então que a gigantesca casa do suntuoso ishtaniano servia de abrigo para um possÃvel exército, mas, para conseguir mais informações, ele precisaria de uma distração. Foi nesse momento que ele fez com que rumores sobre a riqueza de Malquintam caÃssem nos ouvidos de Diógenes, sabendo que o bastardo era ambicioso a ponto de querer tomar o casarão para si. Ele não imaginava que o bastardo fosse ser tão brutal na invasão da mansão, mas aquilo se mostrou necessário para que o cavaleiro pudesse se infiltrar. Os Ishtanianos ficaram furiosos com as atrocidades feitas por Diógenes e seus homens. O ódio deles era tão grande que deixou-os desprevenidos, cegos por vingança, pensando apenas em crucificar os culpados daquele massacre. Roderick se aproveitou dessa fraqueza e conseguiu entrar nas passagens secretas e descobriu o esconderijo, vendo que a única iluminação da grande caverna era feita apenas por tochas, ele desenhou seu plano, que consistia em trancar as saÃdas, matar as sentinelas das tochas e deixar todos no escuro, uma vez que o breu dominasse o recinto, ele, que não tinha dificuldades em encontrar seus inimigos sem o auxÃlio da visão, poderia enfrentar até mesmo um exército de milhares de homens e assim ele fez.
Diógenes não conseguiu ficar com raiva por ter sido usado, o único sentimento que tinha por Roderick era medo, muito mais do que isso, ele sentia pavor do cavaleiro e o massacre que ele fez transformou-se em pesadelo recorrente para o bastardo. Ele nunca mais conseguiu ter uma boa noite de sono. As palavras do cavaleiro atormentavam-no constantemente a ponto de deixá-lo sempre alerta. Foi esse terror que o salvou nessa noite, quando oito homens armados invadiram seu quarto, imaginando que encontrariam um rei indolente, dormindo o sono dos justos, mas o que realmente encontraram foi uma fera assustada, que tinha a insônia dos neuróticos, pronta para se defender de qualquer ataque surpresa. O bastardo era um maldito sobrevivente.